Vida e Morte Descobertas

Por Marcelo oXarope
06/01/2024

Publicado em

oXarope1050124secomba

Um misterioso vulto numa noite quente e uma revelação. Prosa poética inspirada em “Descobrimento”, de Mário de Andrade

Debruçado sobre a escrivaninha da antessala do meu quarto, no apartamento que fica aos fundos do pátio da minha casa, na rua Joana Angélica, interior da Bahia, senti um frio percorrer a espinha, como um sopro.

Larguei os utensílios necessários para a escritura, as penas e a tinta, despertei o coração cansado e escutei os passos.

Passos sobre as telhas de barro.

No terreiro ao lado da casa, os ogãs, com o ibê e o ilú salientes, puxavam a voz de uma velha senhora que, em língua afro-cubana, cantava aos mortos.

“La muerte esta con nosotros”, celebrava a mulher com autoridade.

Senti outra vez a friúra no corpo tremido e fiquei profundamente impressionado.

Saí ao átrio, havia um vento farfalhando nas folhas da pitangueira miúda à qual fui recentemente presenteado e tratei de auscultar, na ânsia de reconhecer os rumores.

Sobre o banco de ladrilhos, meu gato branco olhava para mim, como que espantado.

Esquadrinhavam-me também o livro de capa amarela, a fotografia em preto e branco feita por meu pai há quase trinta anos, a face de uma Madonna com sombra azulada sobre os olhos e as pequenas estatuetas budistas de bronze, estas viradas de costas para a porta de madeira gasta.

Não sei bem o que em mim querem lembrar. Por que me miravam?

“Que opinas desta foto? Como me veo?”, sussurrou uma alma quase aos meus ouvidos.

A pergunta inestimável, feita em espanhol, sem que eu me recordasse de átimo o contexto, deveria ser fruto dos meus pensamentos.

Mas, ali, naquela noite quente de fim de ano, parte do mundo – o que me cerca, mas não me insula – induzia, pelo olhar, a que eu opinasse sobre tudo e todos à volta, como se formasse juízo de vida e de morte. 

Olhavam para mim – o gato, o livro, a fotografia, a sombra – e talvez quisessem descobrir, como no relógio sobre a mesa, alguma busca ou um impulso.

“Quem sou? Para onde vou?”, murmurou a voz desconhecida outra vez.

Não teria feito a menor diferença se fosse uma passagem pela Baker Street ou uma viagem de trem ao redor do mundo.

Fosse um bar à beira-mar ou um café na Serra, em Minas.

Qualquer lugar que eu estivesse – e calhou de ser o pátio onde vejo as estrelas enquanto, sozinho, fumo um cigarro de palha -, eu estaria só, intoxicado em meu próprio medo.

Entre bilhões de humanos, eu estava ali, visto por alguém que não entrevia.

Foi quando notei, sobressaltado, na escuridão diligente da noite, um homem.

Um homem descorado como um céu branco escorrendo dos olhos.

Meu Deus, autor do mundo, diga-me: estava eu a sonhar?

Entre o plano físico e o que de imaterial há, não deveria aquilo ser real.

Mas trago à memória – e pasmo estou – um fato: este homem me olhou, ali, perto do caqueiro de cimento, coberto de brumas.

De onde veio? De que norte?

Nada seria ainda mais assombroso, no entanto o estranho homem que jazia falou.

“Pare de tanto andar, pensar e pretender mover o mundo”, disse ele, em tom imperioso.

Disse, ainda, que preciso reorganizar as minhas forças armadas, abraçar causas até onde meus braços alcancem, e não além.

Contou que um dia terei um sítio, um lugar rústico, com uma pequena horta e um pomar.

E, dos lábios que mais pareciam feitos da borracha do dia, disse-me que, ultimamente, deixei de existir.

Durante a conversação, cessaram os atabaques da vizinhança.

O som, agora, era quase etéreo, como se precipitasse o amanhecer.

O homem, alheio de si, ainda afirmou que, um dia, criaremos, juntos, obras de real imaginação.

Ah, aquele homem era estrangeiro, que nem eu.

Deixava ali as velhas vestes de seu destino para adotar uma nova humanidade.

Um homem que, de tão morto, quase dormia aparentemente em vão.

Parecia ter, perto do termo, uma consciência sobre si e sobre o que faria depois, servindo de inspiração.

“Viver é agora e, logo mais, pode não ser”, ainda teve tempo de dizer, antes de morrer.

“Muerto, muerto esta. Ni muerto acaba su penar”, voltou a rezar a velha senhora do terreiro ao lado.

Entre o espanto provocado pelo diálogo austero, os olhares e os sons dos tambores, vi cada gesto, em cada segundo seu, que parecia me dizer que aquele homem era eu.

Farei, então, se preciso for, exatamente assim: morrerei este homem em mim.

1678540344banner-970x90-bello.png

Mais recentes

Bahia lidera país em trabalhadores que vão a pé para o trabalho, revela Censo 2022

Nos resultados do Censo Demográfico 2022, divulgados nesta quarta-feira (9/10) pelo IBGE, a Bahia aparece com a…

IFBA Eunápolis promoverá 22º Semana Nacional de Ciência e Tecnologia 2025 no mês de outubro

O Instituto Federal da Bahia- Campus Eunápolis promoverá a sua 22ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT),…

Bahia conquista destaque nacional com vitórias do SENAI na WorldSkills 2025

Leonardo Bertho, de 20 anos, e Ellen Almeida, de 21, representaram a Bahia e brilharam na WorldSkills…

Zona Azul entra em funcionamento neste mês de outubro em Porto Seguro

O sistema de Estacionamento Rotativo Zona Azul Digital deverá entrar em funcionamento em Porto Seguro a partir…

Mais de 212 mil aposentados e pensionistas da Bahia já receberam devoluções do INSS

Mais de 212,9 mil aposentados e pensionistas da Bahia já receberam devoluções do INSS, referentes a descontos…

Vida e Morte Descobertas

Por Marcelo oXarope
06/01/2024 - 06h55 - Atualizado 6 de janeiro de 2024

Publicado em

oXarope1050124secomba

Um misterioso vulto numa noite quente e uma revelação. Prosa poética inspirada em “Descobrimento”, de Mário de Andrade

Debruçado sobre a escrivaninha da antessala do meu quarto, no apartamento que fica aos fundos do pátio da minha casa, na rua Joana Angélica, interior da Bahia, senti um frio percorrer a espinha, como um sopro.

Larguei os utensílios necessários para a escritura, as penas e a tinta, despertei o coração cansado e escutei os passos.

Passos sobre as telhas de barro.

No terreiro ao lado da casa, os ogãs, com o ibê e o ilú salientes, puxavam a voz de uma velha senhora que, em língua afro-cubana, cantava aos mortos.

“La muerte esta con nosotros”, celebrava a mulher com autoridade.

Senti outra vez a friúra no corpo tremido e fiquei profundamente impressionado.

Saí ao átrio, havia um vento farfalhando nas folhas da pitangueira miúda à qual fui recentemente presenteado e tratei de auscultar, na ânsia de reconhecer os rumores.

Sobre o banco de ladrilhos, meu gato branco olhava para mim, como que espantado.

Esquadrinhavam-me também o livro de capa amarela, a fotografia em preto e branco feita por meu pai há quase trinta anos, a face de uma Madonna com sombra azulada sobre os olhos e as pequenas estatuetas budistas de bronze, estas viradas de costas para a porta de madeira gasta.

Não sei bem o que em mim querem lembrar. Por que me miravam?

“Que opinas desta foto? Como me veo?”, sussurrou uma alma quase aos meus ouvidos.

A pergunta inestimável, feita em espanhol, sem que eu me recordasse de átimo o contexto, deveria ser fruto dos meus pensamentos.

Mas, ali, naquela noite quente de fim de ano, parte do mundo – o que me cerca, mas não me insula – induzia, pelo olhar, a que eu opinasse sobre tudo e todos à volta, como se formasse juízo de vida e de morte. 

Olhavam para mim – o gato, o livro, a fotografia, a sombra – e talvez quisessem descobrir, como no relógio sobre a mesa, alguma busca ou um impulso.

“Quem sou? Para onde vou?”, murmurou a voz desconhecida outra vez.

Não teria feito a menor diferença se fosse uma passagem pela Baker Street ou uma viagem de trem ao redor do mundo.

Fosse um bar à beira-mar ou um café na Serra, em Minas.

Qualquer lugar que eu estivesse – e calhou de ser o pátio onde vejo as estrelas enquanto, sozinho, fumo um cigarro de palha -, eu estaria só, intoxicado em meu próprio medo.

Entre bilhões de humanos, eu estava ali, visto por alguém que não entrevia.

Foi quando notei, sobressaltado, na escuridão diligente da noite, um homem.

Um homem descorado como um céu branco escorrendo dos olhos.

Meu Deus, autor do mundo, diga-me: estava eu a sonhar?

Entre o plano físico e o que de imaterial há, não deveria aquilo ser real.

Mas trago à memória – e pasmo estou – um fato: este homem me olhou, ali, perto do caqueiro de cimento, coberto de brumas.

De onde veio? De que norte?

Nada seria ainda mais assombroso, no entanto o estranho homem que jazia falou.

“Pare de tanto andar, pensar e pretender mover o mundo”, disse ele, em tom imperioso.

Disse, ainda, que preciso reorganizar as minhas forças armadas, abraçar causas até onde meus braços alcancem, e não além.

Contou que um dia terei um sítio, um lugar rústico, com uma pequena horta e um pomar.

E, dos lábios que mais pareciam feitos da borracha do dia, disse-me que, ultimamente, deixei de existir.

Durante a conversação, cessaram os atabaques da vizinhança.

O som, agora, era quase etéreo, como se precipitasse o amanhecer.

O homem, alheio de si, ainda afirmou que, um dia, criaremos, juntos, obras de real imaginação.

Ah, aquele homem era estrangeiro, que nem eu.

Deixava ali as velhas vestes de seu destino para adotar uma nova humanidade.

Um homem que, de tão morto, quase dormia aparentemente em vão.

Parecia ter, perto do termo, uma consciência sobre si e sobre o que faria depois, servindo de inspiração.

“Viver é agora e, logo mais, pode não ser”, ainda teve tempo de dizer, antes de morrer.

“Muerto, muerto esta. Ni muerto acaba su penar”, voltou a rezar a velha senhora do terreiro ao lado.

Entre o espanto provocado pelo diálogo austero, os olhares e os sons dos tambores, vi cada gesto, em cada segundo seu, que parecia me dizer que aquele homem era eu.

Farei, então, se preciso for, exatamente assim: morrerei este homem em mim.

1

Mais recentes

Bahia lidera país em trabalhadores que vão a pé para o trabalho, revela Censo 2022

Nos resultados do Censo Demográfico 2022, divulgados nesta quarta-feira (9/10) pelo IBGE, a Bahia aparece com a maior proporção de trabalhadores que se deslocam a…

IFBA Eunápolis promoverá 22º Semana Nacional de Ciência e Tecnologia 2025 no mês de outubro

O Instituto Federal da Bahia- Campus Eunápolis promoverá a sua 22ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), entre os dias 21 a 25 de outubro….

Bahia conquista destaque nacional com vitórias do SENAI na WorldSkills 2025

Leonardo Bertho, de 20 anos, e Ellen Almeida, de 21, representaram a Bahia e brilharam na WorldSkills Brasil 2025, maior competição de educação profissional das…

Zona Azul entra em funcionamento neste mês de outubro em Porto Seguro

O sistema de Estacionamento Rotativo Zona Azul Digital deverá entrar em funcionamento em Porto Seguro a partir do mês de outubro de 2025. A primeira…

Mais de 212 mil aposentados e pensionistas da Bahia já receberam devoluções do INSS

Mais de 212,9 mil aposentados e pensionistas da Bahia já receberam devoluções do INSS, referentes a descontos não autorizados em seus benefícios. O valor total…

Senador Alessandro Vieira confirma: PEC da Blindagem será enterrada na quarta-feira

O senador Alessandro Vieira, do MDB de Sergipe, afirmou que vai apresentar parecer contrário à PEC da Blindagem na Comissão de Constituição e Justiça. A…

PEC da Blindagem transforma imunidade em impunidade

A chamada PEC da Blindagem reacendeu um debate central para a democracia brasileira: até onde vai a imunidade parlamentar sem se transformar em impunidade? Aprovada…

Governo lança diagnóstico sobre violência sexual online contra crianças e adolescentes

Governo do Brasil apresentou nesta semana o diagnóstico nacional sobre violência sexual online contra crianças e adolescentes. O estudo, elaborado com apoio de organismos internacionais…

Agricultura baiana bate recorde em 2024 com alta de 8,4% mesmo com queda nos grãos

Os dados da Produção Agrícola Municipal (PAM) 2024, divulgados nesta quinta-feira, 11 de setembro, pelo IBGE, revelam um marco para a agricultura da Bahia. O…

Governo lança consulta pública para combater racismo nas plataformas digitais

Nesta segunda-feira (1º), o Governo Federal abriu uma consulta pública sobre o combate ao racismo nas plataformas digitais. A iniciativa é conduzida pela Secretaria de…

Golpe do falso advogado: Com 1220 denúncias, OAB-BA lança nova cartilha para chamar atenção da população

A OAB Bahia lançou uma nova cartilha digital para ajudar a população a identificar e evitar o chamado “golpe do falso advogado”, que vem crescendo…

Geoeconomia virou arma de Trump e o Brasil pode ser um dos maiores prejudicados

Desde sua campanha e no início de seu segundo mandato, Donald Trump adotou uma estratégia baseada em tarifas elevadas, sanções e manipulação monetária, transformando a…

Governador Jerônimo recebe prefeito de Salvador para tratar de parcerias e ações conjuntas para a capital

O governador Jerônimo Rodrigues e o prefeito de Salvador, Bruno Reis, sentaram à mesa nesta quarta-feira (27) para discutir a gestão na capital. O encontro,…

Brasil bate recorde com 1,34 milhão de empregos formais em 2025 e mercado segue em alta

O Brasil ultrapassou a marca de 1,34 milhão de novos empregos com carteira assinada entre janeiro e julho de 2025. O dado foi divulgado nesta…

“STF redistribui à André Mendonça inquérito sobre fraude bilionária no INSS”

Em Brasília, nesta segunda-feira (25), o ministro André Mendonça assumiu a relatoria do inquérito que investiga fraudes bilionárias nos descontos em benefícios do INSS, após…

Rolar para cima